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Foto do escritorLucas Almeida

A visão é um sentido extremamente complexo, composto por diversas partes interligadas que processam a luz que entra pelos olhos e a leva para ser interpretada pelo cérebro. Esse trajeto longo é feito tão rápido que sequer é possível se dar conta de que, na verdade, estamos vendo uma interpretação matemática de milhões de ondas luminosas a nossa volta. Esse raciocínio lógico bastaria para o lado esquerdo do nosso cérebro, contudo, toda a porção direita se empenha com afinco em empregar definições criativas e interpretações significativas dos estímulos visuais. Com isso, o homo sapiens é capaz não apenas de enxergar, mas também de imaginar, criar, acreditar e contar histórias e ligar tudo isso com experiências passadas e de outros homo sapiens em uma imensa rede de conhecimento compartilhado.

Os olhos são a janela da alma, o que eles enxergam é tão importante quanto o que os outros enxergam no fundo deles. O brilho do olhar apaixonado e as faíscas de um olhar raivoso muitas vezes comunicam muito mais que qualquer outro tipo de linguagem. Nessa mesma lógica podemos dizer então que as janelas são os olhos da casa e tão importante quanto a vista lá de fora é a alma que é enxergada aqui dentro. Acho que uma janela que mira um por do sol manchado de laranjas e violetas acima de um mar de prédios polvilhado de luzes é, sem dúvidas, encantador. Contudo me pego muitas vezes imaginando qual é a alma que essa cidade enxerga por trás dos olhos desse apartamento que, a menos que você esteja em um drone, dificilmente serão vistos por outros homo sapiens.

Certamente existirá muita alma nas persianas se abrindo bem cedo enquanto a cama vai sendo arrumada, esticando os lençóis junto com a preguiça que só vai embora completamente depois de um banho e um expresso. Uma parte dessa alma será posta na mesa posta junto aos pães e frutas e alguns pedaços de parmesão que sobraram de uma macarronada de dias atrás. Uma outra parte estará no meio das mantas ao lado do sofá que vão esquentar as pernas durante o filme de sessão da tarde no domingo preguiçoso. O que eu quero dizer é: toda a vida cotidiana que acontece por trás de uma janela é a alma de algo maior que nós, a junção desse monte de almas que são exibidas por cada uma das janelas como se fossem milhares de peças de teatro simultâneas é o que confere uma camada de aconchego nessa selva de pedras e torna a paisagem amigável e é por isso que, mesmo de longe, existe muito fascínio em olhar essa paisagem de prédios polvilhados de luz, porque ainda que não consigamos ver sabemos que cada pontinho iluminado ao longe é a alma de um lar.

E talvez seja por conta desse fascínio que temos pela paisagem da cidade que buscamos remontar seus detalhes dentro de casa. Enxergamos prédios nos pilares de concreto da sala que estão abraçados a lembranças de viagens e fotos de família; o polvilhado as luzes indiretas espalhadas pelo teto de concreto lembram o mar de janelas iluminadas no horizonte. Até mesmo tons amarelos, laranjas e violetas do céu viram flores no painel pintado na parede da cozinha, assim como os grafites em muros e prédios do centro da cidade. E as janelas, grandes panos de vidro, misturam o que está lá fora e aqui dentro em uma dança até o momento em que tudo é uma coisa só, um grande espaço único cheio de casa e cidade que entendemos e acolhemos como lar.

Para o lado esquerdo do meu cérebro, estaríamos apenas falando de um apartamento no vigésimo segundo andar com sala e cozinha integradas e belíssimos pilares e teto de concreto, um painel artístico que remonta flores e plantas na parede da cozinha e ainda faz uma releitura dos grafites do elevador do próprio prédio e tudo isso coroado por grandes janelas basculantes de onde entra muita luz e por onde se vê toda a zona sul de São Paulo. Entretanto é a riqueza de interpretações do lado direito que adiciona uma nova camada de significado a esse ambiente cuidadosamente pensado para funcionar e agradar. Recentemente li um livro[1] que falava sobre como o homo sapiens busca trazer significado para que cada uma de suas experiências tenha um valor único e simbólico, por isso me importa muito saber o tamanho e a vista da janela e se bate sol suficiente para as plantas que vão ficar apoiadas no banco afrente, contudo, talvez o que mais me traga fascínio é descobrir o que existe por trás desses olhos que enxergam a cidade.

[1] Homo Deus: Uma breve história do amanhã de Yuval Noah Harari. Companhia das Letras, 2016.




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Foto do escritorLucas Almeida

Imagine um grupo de pessoas em uma noite muito fria, o que pode variar de meros 10° Celsius à temperaturas negativas se esse texto for lido em São Paulo, Porto Alegre ou Gdańsk, no litoral norte da Polônia. Essas quatro pessoas vestidas de roupas felpudas e com mantas sobre as pernas bebem algo para esquentar a alma, estão dispostas em uma espécie de circulo ou meia lua enquanto conversam e logo ao centro está a fonte de luz que rasga o ambiente escuro com seus tons amarelos, laranjas e azuis desenhando elipses de sombra atrás de cada corpo. Agora me conte: essa descrição é de uma caverna paleolítica em algum ponto gelado da Eurásia, do foyer da Ópera de Paris num entre concertos da Belle Époque ou de uma sala de TV curitibana assistindo a nova animação da Disney no meio das férias de Julho?

É admirável que essa tecnologia descoberta há milhares de anos, em meio ao século XXI, ainda é capaz de reunir pessoas ao seu redor não apenas para se aquecer mas também para contemplar a elegante dança das chamas. Apesar das máquinas, informática e inteligência artificial o ser humano ainda é muito ritualístico trazendo impregnado em suas tecnologias mais avançadas uma cartela de valores que nos marcam desde que nos concebemos por espécie e sociedade e o fogo é um dos signos que mais estão entrelaçados na nossa cultura de convívio.

Para além do aquecimento, esse elemento ainda marca ciclos e laços, afinal, quantos de nós já não reuniu entes queridos ao redor de uma mesa cheia de alimentos com várias velas enquanto o grupo entoava em uníssono o famoso cântico: parabéns para você, nessa data querida, muitas felicidades e muitos anos de vida! Aos mais dramáticos posso ir além ainda e perguntar quantos já não pegaram cartas e fotos de um amor que se foi e as queimou para findar a dor de um término. Ou seja, o fogo não é exatamente um adorno senão a condição de existência em sociedade e o ligamento entre os laços de afeto.

Metade do país não vai se relacionar com os parágrafos seguintes, tomo a licença poética de relatar sentado em meu apartamento em São Paulo no meio de julho, quando a temperatura máxima chega a vinte e poucos graus com um ventinho gelado, portanto aos que se encontram acima de Minas Gerais apenas digo que adoraria estar disfrutando do inverno tropical junto à vocês, contudo, para os que estão daqui para baixo talvez o pôr do sol traga consigo a vontade de se enrolar numa manta, ligar o Netflix, pegar uma taça de vinho ou quem sabe um belo fondue e ascender uma lareira. Chega a ser raro falarmos em ascender uma lareira em um país tropical abençoado por Deus, mas segundo a plataforma Projeteee da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)[1] e do Ministério do Meio Ambiente (MMA) na cidade de São Paulo em maior parte do ano o desconforto térmico nas edificações é oriundo do frio e não do calor.

Ainda assim o fogo aparece nas casas paulistanas muito mais no preparo de alimentos, salvo no sul do país onde lareiras se tornam mais comuns, o frio inverno de São Paulo costuma ser enfrentado com aquecedores ou lareiras portáteis que alegram a noite dos pequenos apartamentos que não poderiam ter toda a infraestrutura para uma à lenha.

De qualquer forma o fogo sempre nos trará o encanto espiritual e ritualístico da dança das chamas, seja para aquecer uma sala de estar em São Paulo, para preparar um acarajé cheio de dendê em Salvador ou para o luau na praia em Maceió. Porém para aqueles que, assim como eu, estão abaixo do Trópico de Capricórnio, talvez o fogo nesse mês seja o elemento que vai invadir a sala de TV e virar a aura do ambiente, abraçar os corpos com sua ternura quente e preencher todo o ar. Apesar do medo de se queimar é inegável que o calor do fogo traz em si uma mágica que nos une, talvez então, o fogo seja em si a materialização do amor.

[1] Portal Projeteee <http://www.mme.gov.br/projeteee>.

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Foto do escritorLucas Almeida

Certa vez minha mãe me perguntou como eu conseguia ter tantas coisas penduradas no meu chaveiro. Em minha bolsa havia um emaranhado de chaves da minha casa e da minha avó junto a argolas, enfeites e pingentes. Isso só foi mudar anos depois quando fui morar sozinho, a chave do meu apartamento tinha uma base redonda e prateada e estava pendurada em um chaveiro plástico amarelo com o número 37 escrito à mão. Este logo foi substituído por uma medalha de São Bento que passaria a ser seu único adorno até que recebesse como companheira a chavinha preta do cadeado da minha bicicleta.

Ter aquela chave em mãos me fez refletir sobre as portas que ela abriria, muito além da única entrada do meu pequeno apartamento alugado em São Paulo, ela destrancava uma série de expectativas e sonhos que me acompanharam por boa parte da vida. Construir um lar não é das tarefas mais fáceis, é como quando cortamos uma folha de jiboia e temos que deixar alguns dias em um copo com água para criar raízes antes de colocar em um vaso com terra, leva tempo até se fincar no novo terreno e reconquistar a estabilidade anterior à mudança.

Nesse período qualquer tempo livre virou um momento de negociar um caminhão de mudança e agendar a ligação da energia enquanto longos debates em cima de plantas baixas com três posições diferentes para a cama apareciam em meio ao jantar. Certamente para mim esse processo foi bastante ortodoxo, no meio da faculdade de arquitetura e filho de uma arquiteta era inegável que o simples arranjar dos poucos móveis que cabiam em trinta metros quadrados viraria um dos grandes projetos no qual eu já trabalhei. E assim foi sendo construído esse lar, com algumas coisas novas e outras herdadas, dezenas de experimentos no papel e uma montagem a oito mãos que resultou no meu novo lugar preferido.

Ainda assim não me mudei com muito, na realidade o que menos tinha em casa eram móveis, a concretização desse projeto estava em todo o afeto que foi colocado sobre cada desenho, nos laços que foram trançados durante cada visita e na história que cada detalhe teria para ser contada muitas e muitas vezes, assim como essa. Gosto de dizer que a arquitetura constrói lugares e não espaços; espaço é muito impessoal, não temos relação afetiva com o espaço sideral, por exemplo, pois nunca estivemos lá. Agora lugar é inundado de sentimentos e vivências. Era isso que dizia Christian Norberg-Schulz, um arquiteto norueguês do século passado, e é assim que enxergo meu pequeno apartamento onde cabe uma vida inteira.

Portanto, essas foram as portas que aquela chave abriu. Tê-la em mãos foi o incentivo para começar a procurar suas fechaduras e acredito que seja esse o primeiro passo para se construir um lar. Junto à cada planta baixa que foi feita para esse apartamento existiu uma narrativa que contava histórias de vida e abria espaço para novas histórias serem criadas, que organizava lembranças e que adubava a terra firme onde a mudinha de jiboia seria plantada. Hoje eu levo toda essa experiência pendurada em meu chaveiro, que está maior do que nunca.


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