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O bolo


Tudo começa cerca de trinta minutos antes quando o forno é pré-aquecido, um passo que a maioria esquece mas faz grande diferença no resultado final. É durante esses trinta minutos que a cozinha branca ganha tons de ganache e creme de confeiteiro e a orquestra da batedeira se mistura ao tilintar dos potes de vidro no mármore. A ilha comprida já não tem mais um vaso de flores e os pratos do café da manhã, ela agora é palco de algumas tigelas com farinha, cacau, ovos e essência de baunilha fracionados e prontos para entrar na batedeira a qualquer minuto. Os veios cinza da pedra ganham um polvilhado de marrom e gotas de leite, a forma enfarinhada termina a obra que não tardará a ser limpa para que outro show comece ali mesmo.

Apesar de serem muito relacionados a confeitaria se difere muito da gastronomia e a precisão talvez seja o mais importante, enquanto costumamos usar sal, pimenta, cúrcuma e salsinha a gosto e consertar com mais água ou menos fogo pratos que as vezes saem do nosso controle a confeitaria exige uma precisão suíça quando se trata de quantidades, métodos e processos. Duzentos gramas de açúcar não podem virar duzentos e dez assim como não se pode alterar o sentido enquanto se mistura a massa, a ordem dos ingredientes deve ser seguida à risca e é preciso estar muito atento para não empelotar ou solar a massa antes mesmo de ela ir para o forno.

Talvez seja por isso que muitos preferem se arriscar na gastronomia, contudo, é impossível resistir à uma bela torta de morango com creme de confeiteiro e por isso que a confeitaria ganha tanto valor. Os segredos não estão só na receita, mas nas mãos do confeiteiro e na cozinha onde se trabalha. É numa bancada de mármore gelado que se fazem as melhores ganaches, que ficam muito mais lisas e cremosas sem correr o risco de manchar a pedra branca. O forno precisa ser ajustado para que não se perca a umidade inteira antes de dar liga e crescer a massa assim como a geladeira não pode gelar a ponto de o chocolate ganhar uma cobertura de gelo por cima. A faca precisa ser levemente aquecida para não desmontar o bolo ao invés de cortá-lo e, o mais importante, é preciso ter pratos suficientes para todos comerem um generoso pedaço e, muito provavelmente, repetir uma ou duas vezes.

A organização também pode ser o grande ponto de inflexão entre uma torta de biscoito crocante e uma massa murcha e sem vida, o tempo é fundamental para que as misturas não sequem ou umedeçam demais e ter equipamentos em mãos é o que mais facilita quando estamos com os dedos empapados de farinha e claras de ovos e precisamos abrir duas gavetas até encontrar uma espátula. Os nichos de equipamentos, a calha de louças e até mesmo o espaço livre na bancada, para que o necessário seja apoiado ali na hora do preparo sem que falte espaço para se abrir a massa, podem ser o segredo de sucesso de um bom confeiteiro. No fim, mesmo parecendo um malabarismo de farinhas, ovos e adoçantes na tentativa de se transformar tudo numa sobremesa incrível esse espetáculo mais me parece um coral cantando uma sinfonia de Beethoven do que um palhaço de circo tentando equilibrar uma bola no nariz andando de monociclo na corda bamba. A precisão cirúrgica de fazer incisões no ponto certo do chocolate, suturar a massa com a delicadeza adequada e transplantar gemas e claras de uma vasilha a outra é quase que saborosa só de olhar.

Portanto, lembre-se que quando se deliciar com uma bela garfada de suspiro e frutas vermelhas de uma Pavlova redondinha e brilhante existiu um espetáculo por si só para que as claras não ficassem aeradas demais antes de se colocar o açúcar, foi necessário um relógio suíço para que o suspiro não queimasse no forno mas também não ficasse cru e, por fim, mão mais do que firmes para montar as três camadas sem quebrar a casca crocante que abraça a maciez doce do recheio. Certamente o espetáculo em sua boca será mais atraente para o momento, mas será interessante saber como que alguns poucos ingredientes proporcionaram tantos minutos de prazer gustativo.

Por fim, acredito que muitos já estejam a caminho da cozinha a procura de um docinho, portanto, aproveito para sair correndo porque já está na hora de tirar o meu bolo do forno!


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