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A arte


Sabe quantos anos têm os museus? Bom, até mesmo o famoso Louvre, que abriga relíquias milenares, é uma criança ao se comparar com a idade do seu acervo, que data de muito antes de se pensar em guardar a arte em espaços para a visitação do público. Os museus na forma como conhecemos hoje passam a existir a partir do século XVII e são frutos de doações de coleções particulares, a Universidade de Oxford foi responsável por montar o primeiro museu moderno e futuramente abriu espaço para o famoso Museu Britânico. Já em terras tupiniquins a literatura remonta os primórdios da museologia na criação da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1826.

A palavra “museu” vem do grego e era utilizada para designar o templo das musas, ou seja, o lugar onde se estudava as belas artes, com isso o termo passou a ter relação com a arte sacra e lugares onde se expunham objetos de adoração, como os Museus do Vaticano. A concepção da ideia do que era arte apta para ser exposta passa por uma nova discussão em tempos modernos quando Mário de Andrade, em 1937, cria o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, posteriormente renomeado para IPHAN) em cuja definição de o que seria digno de ser considerado patrimônio histórico artístico não menciona edifícios, esculturas, pinturas e objetos, mas sim “das coisas com importância coletiva social, artística, histórica, política e econômica”. Esse ato de disruptividade que o intelectual trazia desde a Semana de Arte Moderna de 1922 é um passo importante para entender que arte não são apenas quadros e esculturas de museus e sim coisas de valor para uma sociedade, e ao definir arte como coisa concluía-se que arte podia ser qualquer coisa.

A rebeldia de Mário de Andrade não é um acaso, o visionário pensador que compartilhou sua ideologia com os maiores nomes da intelectualidade brasileira da época, como sua esposa Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e Gustavo Capanema, trazia na sua provocação uma reflexão cotidiana para nós até hoje, sejamos nós frequentadores assíduos dos museus, pinacotecas e gliptotecas mais relevantes para a história da arte moderna ou grandes apreciadores de fotos amadoras, bibelôs e souvenires de aeroportos, gravuras de lojas de departamento e qualquer outro adorno que faz nossa casa ter algum valor simbólico, artístico, político e econômico para nós. Ao definir arte como coisa nos confrontamos com a imensidade de objetos que temos ao nosso redor e não possuem uma função singular, como por exemplo o copo que uso para beber água, a caneta que anoto minhas pesquisas para esse texto ou até mesmo o computador em que estou digitando nesse exato momento, falo também das almofadas com formas geométricas e franjas coloridas, dos quadros nas paredes com gravuras compradas em lojas de departamento ou trazidas como cartão postal de uma viagem para Montevidéu, do copinho de tequila que veio de Dublin e hoje enfeita a prateleira da sala junto à uma pedra vulcânica do Chile e uma miniatura do Congresso Nacional de Brasília.

A arte invade nossa casa a partir do momento que ela conta uma história, quando depois de duas taças de vinho a mesa vira palco de um acalorado debate para entender o que significam as manchas azul claras no quadro atrás do banco da sala e quais imagens cada um consegue enxergar na pintura abstrata. Invade novamente toda vez que é a história sobre como o pratinho com duas pessoas dançando tango pintadas junto com o nome “Buenos Aires” chegou até o meu hall de entrada é contada. E se estamos falando de coisas que importam e têm valor, a arte também é quando estou na pia fatiando as batatas que serão assadas com páprica defumada, a especialidade que sempre sirvo para as visitas e todos amam, é arte a varanda onde fica minha lavanderia e o momento em que os convidados fazem uma pausa para fumar enquanto eu lavo a louça ou preparo uma sobremesa, é arte minha mãe e avó jogando tranca na mesa da sala até muito tarde da noite em todo fim de ano que nos reunimos.

Ou seja, Mário de Andrade nos deu uma coisa muito especial, o poder de dar valor à detalhes que importam muito para nosso auto entendimento, a “artilização” de objetos que não estariam num museu assim como pinturas dignas de estar em um dos cavaletes de cristal do MASP. Ainda que seja apenas a forma como organizamos as almofadas no sofá ou o oficio de preparar um prato de macarrão para um almoço em família, se existe uma beleza e conta uma história, fico feliz em saber que eu e você vivemos em uma obra de arte.


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