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Noite de inverno


Imagine um grupo de pessoas em uma noite muito fria, o que pode variar de meros 10° Celsius à temperaturas negativas se esse texto for lido em São Paulo, Porto Alegre ou Gdańsk, no litoral norte da Polônia. Essas quatro pessoas vestidas de roupas felpudas e com mantas sobre as pernas bebem algo para esquentar a alma, estão dispostas em uma espécie de circulo ou meia lua enquanto conversam e logo ao centro está a fonte de luz que rasga o ambiente escuro com seus tons amarelos, laranjas e azuis desenhando elipses de sombra atrás de cada corpo. Agora me conte: essa descrição é de uma caverna paleolítica em algum ponto gelado da Eurásia, do foyer da Ópera de Paris num entre concertos da Belle Époque ou de uma sala de TV curitibana assistindo a nova animação da Disney no meio das férias de Julho?

É admirável que essa tecnologia descoberta há milhares de anos, em meio ao século XXI, ainda é capaz de reunir pessoas ao seu redor não apenas para se aquecer mas também para contemplar a elegante dança das chamas. Apesar das máquinas, informática e inteligência artificial o ser humano ainda é muito ritualístico trazendo impregnado em suas tecnologias mais avançadas uma cartela de valores que nos marcam desde que nos concebemos por espécie e sociedade e o fogo é um dos signos que mais estão entrelaçados na nossa cultura de convívio.

Para além do aquecimento, esse elemento ainda marca ciclos e laços, afinal, quantos de nós já não reuniu entes queridos ao redor de uma mesa cheia de alimentos com várias velas enquanto o grupo entoava em uníssono o famoso cântico: parabéns para você, nessa data querida, muitas felicidades e muitos anos de vida! Aos mais dramáticos posso ir além ainda e perguntar quantos já não pegaram cartas e fotos de um amor que se foi e as queimou para findar a dor de um término. Ou seja, o fogo não é exatamente um adorno senão a condição de existência em sociedade e o ligamento entre os laços de afeto.

Metade do país não vai se relacionar com os parágrafos seguintes, tomo a licença poética de relatar sentado em meu apartamento em São Paulo no meio de julho, quando a temperatura máxima chega a vinte e poucos graus com um ventinho gelado, portanto aos que se encontram acima de Minas Gerais apenas digo que adoraria estar disfrutando do inverno tropical junto à vocês, contudo, para os que estão daqui para baixo talvez o pôr do sol traga consigo a vontade de se enrolar numa manta, ligar o Netflix, pegar uma taça de vinho ou quem sabe um belo fondue e ascender uma lareira. Chega a ser raro falarmos em ascender uma lareira em um país tropical abençoado por Deus, mas segundo a plataforma Projeteee da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)[1] e do Ministério do Meio Ambiente (MMA) na cidade de São Paulo em maior parte do ano o desconforto térmico nas edificações é oriundo do frio e não do calor.

Ainda assim o fogo aparece nas casas paulistanas muito mais no preparo de alimentos, salvo no sul do país onde lareiras se tornam mais comuns, o frio inverno de São Paulo costuma ser enfrentado com aquecedores ou lareiras portáteis que alegram a noite dos pequenos apartamentos que não poderiam ter toda a infraestrutura para uma à lenha.

De qualquer forma o fogo sempre nos trará o encanto espiritual e ritualístico da dança das chamas, seja para aquecer uma sala de estar em São Paulo, para preparar um acarajé cheio de dendê em Salvador ou para o luau na praia em Maceió. Porém para aqueles que, assim como eu, estão abaixo do Trópico de Capricórnio, talvez o fogo nesse mês seja o elemento que vai invadir a sala de TV e virar a aura do ambiente, abraçar os corpos com sua ternura quente e preencher todo o ar. Apesar do medo de se queimar é inegável que o calor do fogo traz em si uma mágica que nos une, talvez então, o fogo seja em si a materialização do amor.

[1] Portal Projeteee <http://www.mme.gov.br/projeteee>.

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